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Até o céu é hipócrita - Série Ironias

Ironia é ver um carro funerário na porta de uma maternidade.

Desempacotavam, ainda no porta-malas, quatro caixões alvos. Alvos como a cabeça grisalha do doutor,  densas como a dor infinita nas lágrimas da mãe de primeira viagem.
E pensar que um dia foram quatro alegrias. Pensar que seis meses e três semanas atrás eles eram a felicidade e esperança de um jovem casal prestes a realizar seu sonho. Prestes, e por muito pouco.
Não é fácil aceitar que seis meses e três semanas sonhando com quatro moleques correndo pela casa foram em vão. Eles correriam pelo quintal, lavariam as mãos e entrariam pela porta da cozinha quando ela os chamasse para o almoço. Eles pediriam histórias todas as noites antes de dormir. Eles subiriam os quatro, de uma vez só, no colo do pai, enquanto ele cochilava na poltrona num dia de domingo. Eles iriam para a aula de futebol e balé toda quinta-feira à tarde. Eles esconderiam balas no travesseiro, caçariam formigas, se empurrariam no balanço da praça e ririam comendo manga da árvore do vizinho. Eles seriam felizes.
Mas seus pulmões não suportaram. A aparelhagem de última tecnologia foi enfeite. Tudo era motivo de revolta, dor, rancor. E um motivo só era lágrima. Dois piás, duas gurias. Quatro, vivendo seis meses e três semanas com uma família, com amigos, com carinho, com atenção. Seis meses e três semanas vivendo. Na terra, apenas um dia e uma noite. Seis meses e três semanas respirando, somente. Não puderam deixar um discurso de adeus. Deixaram luto.
A ironia é eles partirem em um dia de sol e céu limpo. Deus não deu ao dia a tristeza que ele carregava. Descobri que até o céu é hipócrita.

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