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Condolência - Série Ironias


Ela caminhava olhando para a flor – quase roubada se o canteiro não fosse domínio público, que flor ganhada não haveria de ser. Amada ela não era, apesar de amar muitos. Ainda que amasse muitos, a flor destinatário também não tinha. Flor que foi arrancada com certa frieza e indiferença, como se fosse pra ser dissecada. E lembrou que fora chamada de fria um dia desses. Riu-se pra dentro. Olhou blasé para o nada e abaixou a mão e a flor. Descia as escadas com a mesma indiferença de dissecar flores. Parecia ser tão comum.  A indiferença, ela, o dia, a flor, comuns como Silvas.
Por um minuto não pensou nada. Depois pensou que nunca aprendera balé ou jazz. Lembrou que preferia ficar em casa lendo. E lia sobre psicologia desde os nove, quando a mãe deixava os ensaios sobre Freud na mesa de centro. Foi assim que conheceu o mundo.
                Vagaram os olhos novamente pela flor. Amarela. Lembrou da mãe. Amarelo era a cor favorita dela. Mas há muito também não lembrava da mãe. Pensou no sol. Ela preferia que o sol fosse laranja. Na concepção dela o mundo todo seria mais bonito se fosse laranja.
                Desocupou a mão da flor para desenrolar os fones. Tinha uma crença quase verídica de que existia um duende que embaraçava fones de ouvido enquanto seus donos estavam distraídos. Ligou o aparelho e caminhava com a flor de volta à mão. Mas logo esqueceu da flor e do duende. Viu no chão um mendigo e pela primeira vez se comoveu. Provavelmente só pra contrariar o pai, que uma vez disse que era gente que merecia ser ignorada. Pensou que Deus não deu asas a cobras, mas que tinha dado à toa corações aos homens.
Caminhava agora em direção a um Silva, Ferreira quem sabe, a um Antônio, João, Pedro, Augusto, José. Perguntou e descobriu ser Jorge. Jorge, como o do santo. Levou um sorriso e a flor, que agora serviria de companhia às quatro moedas douradas no copo pedinte. Ergueu-se e pensou na prova de matemática do dia seguinte.
Ironia é assistir à notícia do atentado terrorista sentado à mesa do jantar, e a próxima frase pronunciada ser: “Amor, me passa o sal?”.
Pensou depois que a flor ficaria melhor na estante.

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