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Desvirtude

Eu sempre peço mais desculpas do que as necessárias. Não é excesso de humildade, acho que é excesso de culpa. Não da que eu tenho, da que eu acho que mereço.
Parece complicado, mas na verdade é tão simples quanto 2+2=4 (é assim, mas há quem duvide).

Eu cuido de uma flor.
Ela é um presente que eu ganhei, e de todos ela é o mais importante.
É uma flor, viva. Ela precisa ser cuidada.
Mas quem me deu, mesmo sabendo que eu sou a pessoa mais desastrada desse mundo, insistiu pra que eu cuidasse dela, teimoso que só Ele.
Mas esse é quem sabe das coisas, então vou cuidar...
Acontece que, enquanto caminho com ela, a apertando contra o peito pra protegê-la do vento, da poeira, dos olhares insípidos, dos raios UV, nem percebo no caminho os atropelos e tropeço, machucando a flor de tanto descuido que me é de batismo.
Tudo o que eu queria era saber cuidar-lhe, bela, porque pra mim não há outro presente que se me dera o qual fosse tão amado.
Mas de tantos tropeços, desatenções, descuidos, desabafos e da minha desvirtude, acabo me punindo pelo sol que te acha na janela, ou pela sombra que sempre tanto te importuna, ou pelo meu constante desejo de te ver bem, que me faz ofegar sobre as suas pétalas com o cansaço de quem passou o dia inteiro procurando do que se culpar.
Perdão, gentil flor. Mais uma vez me desculpo. Mas dessa vez tenho certeza da razão. Perdão por tanto me redimir, e me moer, e rastejar por seu perdão. Acho que me sinto indigna de colocar-lhe à minha vista quando vou dormir. Por isso, confesso, minha vontade é de deitar aos pés do vaso enquanto a lua lhe banha, sem que você perceba que estou ali embaixo te assistindo dormir e que na verdade vigio seu sono. Sei que um dia não te terei mais comigo. Prevejo que um dos meus tropeços vai dar fim à paciência que tens. Prevejo que um dia cairei no sono vigiando o seu, e um gato pela janela passará te chamando à liberdade da noite infinita.
Acho que é por isso que te assisto todo segundo. Pra que quando eu for cobrada possa dizer: eu cuidei.

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