Façam a imagem na cabeça: era um palco montado no meio de um pátio grande. Tinham pilastras para sustentar o andar superior e estavam elas espalhadas. Um campo minado pelo escuro que assombrava as altas horas. O palco era iluminado pelos holofotes. Só por segurança. Público mesmo havia nenhum, que pudesse aplaudir. Porque havia sim a glamurosa mãe terra, as copas escuras e dançantes, as coreografadas correntes de vento que levavam as plumas do outono. E o frio. Não frio gelado do inverno. O frio de deitar cabeça no peito dele. Frio de coberta, frio de vinho. Frio só de casaco pra alguns. Pra ele também.
Chegou no palco e escorou a mochila no pé, antes de subir. O ar veio suave, entrou por seu peito, gelou suas veias, roubou dele um pouco do calor, e saiu, levando consigo todas as impurezas do dia ruim. As ondas escuras que compunham o cabelo serviam pra esquentar as orelhas, ainda que na parte do alargador faltassem os cachos. Tirou fora o casaco porque dali à frente ele não seria necessário. A arte era a manta. As sapatilhas foram tiradas da mochila com o carinho de ninar filho. Calçou-as, testou-as, andou com elas, pulou com elas e se aquecia. Se esticava, se puxava, se abraçava, se queria, se elasticizava. Tirou o cachecol. Ia começar.
Conhecem os clássicos? Lá pra os meios da Idade Média, e antes, e depois, as pessoas se cumprimentavam cuvando-se à frente. Reverenciavam com o chapéu, com a mão, com as saias rodadas, com os olhos. Assim ele fez. Sem chapéu nem saia rodada. Com imaginação e com os olhos; com o corpo, tudo o que ele tinha. E o corpo o acompanhava. Era como se o corpo todo espelhasse a alma de uma criança, que nunca estivera mais feliz. O palco talvez fosse o casulo que ele tanto quis ter. Mais algum tempo depois e seus sonhos nem importariam.
Seus braços pareciam o que ele queria que parecesse. Ele pensava mesa e lá estava; melhor que mágica. Ele pensava som e aparecia, ele pensava cor e aparecia, ele pensava vida e aparecia. E ele pensou paixão.
No pé do palco caminhou aquele que nunca ele ia encontrar igual; mas diferente, porque mesa era imaginação. O cabelo castanho quase curto demais complementava a barba quase grande demais. Barba que quando roçava no pescoço fazia ele, o ator, sentir muita coisa ao mesmo tempo. Porque eles eram um do outro. Não houve destino que negasse.
O ator parou a peça. Shakespeare podia esperar, e Stanislávski, e o resto todo.
-- Você veio.
O moço do pouco cabelo castanho sorriu, respondeu e abraçou forte o ator. Olhou em volta com medo de qualquer sina escorregadia e quis que o resto todo explodisse. Beijaram-se, com a saudade de Romeu e Julieta. A cortina vermelha era o que ele esperava. A cortinha vermelha chegou com o rapaz, que trazia no bolso o “felizes para sempre” que os dois tanto esperavam. Os dedos entrelaçados e os dois iriam ali caminhar para o seu pra sempre como sempre quiseram.
O pátio era pedaço de um parque. O guarda era pedaço do pátio. Ninguém nem ligava. Bom moço, conhecia o ator. O ator, a personagem, o palco, a cortina, as cenas, os atos, as falas. Era talvez único a conhecer o talento do jovem. Era que madrugada era o único tempo em que o palco não era disputado por pombos e usuários de cigarro. Era o único tempo que ninguém usaria pra julgar do que ele escolheu viver, ou como escolheu.
Dentro dos portões do parque o bom guarda poderia os proteger. Um passo a frente e só o léu guardaria (ou não) seja lá o que for que eles planejassem pra si. E o fez enquanto pôde.
Certo que a rua é de todos. Certo também que cada um escolhe com quem anda. Correto quando digo que cada um escolhe quem quer pra si. Óbvio que todos deveriam entender isso.
Vinham do lado contrário da rua aqueles que não tinham quem querer. Aqueles que não tinham razão. Aqueles que nunca sentiram por uma pessoa aquilo que os fizesse sentirem-se únicos. Era um bando. Machos-Alfa tentando dominar o sereno e a noite, que de donos não tinham ninguém. Aqueles que teriam as mãos e pés marcados pela culpa em instantes.
Viram-se todos eles. O de cabelo castanho teve um pressentimento. O ator teve medo. O bando teve coragem.
Todos eles escuros de roupa e de alma. Eram despidos de inteligência. Nasceram e foram vestidos com ignorância.
Caminharam buscando pedras grandes, barras de ferro, pedaços de pau e armas quaisquer que ferissem orgulho. Mal sabiam eles que o que fere corpo não fere espírito.
Olharam-se o ator e o moço de barba. Fundo nos olhos, declarando esperança. Olharam-se e um passo mais deram. Um passo. Um, como o número. O passo que não foi pra trás. Não significou busca por perdão, que eles não queriam, porque pecado nenhum havia. Já tinham a redenção.
A noite ingrata não devolveu à lua o brilho que ganhara.
Naquele momento tudo o que era cor escureceu.
Os pontapés não doíam o corpo, doíam a vergonha de sofrer pela falta de escrúpulos de um país de lema progresso.
Soco nenhum apagou a história dos dois.
O vermelho que saía de um caído no chão era igual ao que corria dentro de um dos que estavam de pé.
A língua era a mesma. A temperatura era a mesma. A bandeira era a mesma.
Verde-amarelo sangue.
Chegou no palco e escorou a mochila no pé, antes de subir. O ar veio suave, entrou por seu peito, gelou suas veias, roubou dele um pouco do calor, e saiu, levando consigo todas as impurezas do dia ruim. As ondas escuras que compunham o cabelo serviam pra esquentar as orelhas, ainda que na parte do alargador faltassem os cachos. Tirou fora o casaco porque dali à frente ele não seria necessário. A arte era a manta. As sapatilhas foram tiradas da mochila com o carinho de ninar filho. Calçou-as, testou-as, andou com elas, pulou com elas e se aquecia. Se esticava, se puxava, se abraçava, se queria, se elasticizava. Tirou o cachecol. Ia começar.
Conhecem os clássicos? Lá pra os meios da Idade Média, e antes, e depois, as pessoas se cumprimentavam cuvando-se à frente. Reverenciavam com o chapéu, com a mão, com as saias rodadas, com os olhos. Assim ele fez. Sem chapéu nem saia rodada. Com imaginação e com os olhos; com o corpo, tudo o que ele tinha. E o corpo o acompanhava. Era como se o corpo todo espelhasse a alma de uma criança, que nunca estivera mais feliz. O palco talvez fosse o casulo que ele tanto quis ter. Mais algum tempo depois e seus sonhos nem importariam.
Seus braços pareciam o que ele queria que parecesse. Ele pensava mesa e lá estava; melhor que mágica. Ele pensava som e aparecia, ele pensava cor e aparecia, ele pensava vida e aparecia. E ele pensou paixão.
No pé do palco caminhou aquele que nunca ele ia encontrar igual; mas diferente, porque mesa era imaginação. O cabelo castanho quase curto demais complementava a barba quase grande demais. Barba que quando roçava no pescoço fazia ele, o ator, sentir muita coisa ao mesmo tempo. Porque eles eram um do outro. Não houve destino que negasse.
O ator parou a peça. Shakespeare podia esperar, e Stanislávski, e o resto todo.
-- Você veio.
O moço do pouco cabelo castanho sorriu, respondeu e abraçou forte o ator. Olhou em volta com medo de qualquer sina escorregadia e quis que o resto todo explodisse. Beijaram-se, com a saudade de Romeu e Julieta. A cortina vermelha era o que ele esperava. A cortinha vermelha chegou com o rapaz, que trazia no bolso o “felizes para sempre” que os dois tanto esperavam. Os dedos entrelaçados e os dois iriam ali caminhar para o seu pra sempre como sempre quiseram.
O pátio era pedaço de um parque. O guarda era pedaço do pátio. Ninguém nem ligava. Bom moço, conhecia o ator. O ator, a personagem, o palco, a cortina, as cenas, os atos, as falas. Era talvez único a conhecer o talento do jovem. Era que madrugada era o único tempo em que o palco não era disputado por pombos e usuários de cigarro. Era o único tempo que ninguém usaria pra julgar do que ele escolheu viver, ou como escolheu.
Dentro dos portões do parque o bom guarda poderia os proteger. Um passo a frente e só o léu guardaria (ou não) seja lá o que for que eles planejassem pra si. E o fez enquanto pôde.
Certo que a rua é de todos. Certo também que cada um escolhe com quem anda. Correto quando digo que cada um escolhe quem quer pra si. Óbvio que todos deveriam entender isso.
Vinham do lado contrário da rua aqueles que não tinham quem querer. Aqueles que não tinham razão. Aqueles que nunca sentiram por uma pessoa aquilo que os fizesse sentirem-se únicos. Era um bando. Machos-Alfa tentando dominar o sereno e a noite, que de donos não tinham ninguém. Aqueles que teriam as mãos e pés marcados pela culpa em instantes.
Viram-se todos eles. O de cabelo castanho teve um pressentimento. O ator teve medo. O bando teve coragem.
Todos eles escuros de roupa e de alma. Eram despidos de inteligência. Nasceram e foram vestidos com ignorância.
Caminharam buscando pedras grandes, barras de ferro, pedaços de pau e armas quaisquer que ferissem orgulho. Mal sabiam eles que o que fere corpo não fere espírito.
Olharam-se o ator e o moço de barba. Fundo nos olhos, declarando esperança. Olharam-se e um passo mais deram. Um passo. Um, como o número. O passo que não foi pra trás. Não significou busca por perdão, que eles não queriam, porque pecado nenhum havia. Já tinham a redenção.
A noite ingrata não devolveu à lua o brilho que ganhara.
Naquele momento tudo o que era cor escureceu.
Os pontapés não doíam o corpo, doíam a vergonha de sofrer pela falta de escrúpulos de um país de lema progresso.
Soco nenhum apagou a história dos dois.
O vermelho que saía de um caído no chão era igual ao que corria dentro de um dos que estavam de pé.
A língua era a mesma. A temperatura era a mesma. A bandeira era a mesma.
Verde-amarelo sangue.
O rapaz de cabelo castanho queria se casar com o ator.
O ator queria que o de cabelo castanho fosse à sua estréia na Broadway, no mês que seguiria.
A noite queria a felicidade.
Nenhum deles encontrou o fado certo.
Jade, com certeza esse texto. E você que não reclame, dona Thayomara Thalyta!
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